Já estamos no século 21 há 20 anos, mas parece que o século passado ainda não nos deixou. E não estou falando da moda de sempre reviver alguma década passada para lançar “reinterpretações estéticas e artísticas”. Estou falando do medo do desconhecido, do mundo onde nascemos e crescemos, que não existe mais. A incerteza nos faz agarrar o conhecimento que já foi experimentado e testado.
Isso pode ser difícil para muitas pessoas, mas a industrialização acabou há muito tempo. Mesmo o termo Desenho Industrial — o termo original para designar a profissão de designer não é mais usado — eu o uso apenas no preenchimento do campo ‘profissão’ nas fichas de ocupação profissional. O termo Design foi incorporado ao nosso léxico nas últimas décadas do século passado… e hoje, dizer que você é um ‘designer industrial’ é motivo de riso e um sinal revelador de que você é um velho!
A manufatura há muito é considerada a base do crescimento econômico nos países desenvolvidos, mas está chegando ao fim. O crescimento nas economias desenvolvidas virá cada vez mais do segmento de serviços. As economias em desenvolvimento, como sempre, demoram para acompanhar as mudanças, mas sempre as alcançam em algum momento.
Dave Gray em seu livro “The Connected Company” nos apresenta muitas informações sobre o mercado americano. Aqui está uma citação instigante:
“Desde 1960, os serviços dominaram o mercado de trabalho norte-americano. O atual setor de serviços responde por cerca de 80% da economia norte-americana. Nove em cada dez empresas com menos de 20 funcionários são do setor de serviços.”
A referência dos tempos de industrialização era seu processo de fabricação seriada e o principal resultado de tal processo: o produto! Segundo o dicionário Houaiss da língua portuguesa, “[um] produto é o que se produz; [o] resultado da produção”. Mas você deve estar se perguntando o fato de ainda existirem fábricas aqui no Brasil e em vários outros países, que produzem toneladas e toneladas de produtos todos os anos. De fato, mas o que sociólogos, economistas e historiadores nos apontam é que as engrenagens mudaram na virada dos anos 1960 para os anos 1970 e as principais economias do mundo passaram a perceber o poder econômico do setor de serviços.No Brasil, o setor de serviços sempre foi o mais rentável, apesar do atraso no processo de industrialização.
O sociólogo português Boaventura Santos caracteriza a transformação de produtos em serviços nas economias globais ao discutir 4 características centrais do atual momento em que nos encontramos:
“Vivemos em um mundo pós-industrial , que se consolida na experiência organizacional, no investimento em tecnologia de ponta, em grupos de especialistas, na produção modular, na geração de serviços e na produção e transmissão de informações. Estamos cercados de informações . [Esta] informação, quando transformada em conhecimento, torna-se o grande capital da humanidade neste período. A velocidade do desenvolvimento tecnológico está mudando as relações interpessoais . E a globalização que quebrou as barreiras geográficas. “
Na mesma virada dos anos 1960 para os anos 1970, as engrenagens dentro do Design também começaram a mudar. Os dois ramos tradicionais do agora extinto ‘Design Industrial’ – ou seja, ‘design de produto e comunicação visual – não eram mais capazes de atender às necessidades de um mundo em constante mudança. Esses desafios exigiram que usássemos processos de design em contextos complexos para resolver problemas complicados. Em outras palavras, o design teve que passar do modo artesanal – de apenas fazer design para o modo de pensar— ou seja, pensar o design e suas conexões com outras áreas do conhecimento. A principal vantagem dessa provocativa mudança é sair do material — o mundo das coisas — e ir para o mundo das experiências, do imaterial e do pensamento sistêmico. Compreender este ponto de viragem é crucial se quisermos compreender o que se passa no Design nos dias de hoje.
Na última década do século 20, quando ainda estávamos extasiados com os experimentos e possibilidades digitais, como a web, um pensador do design chamado Richard Buchanan escreveu um artigo que sintetizou todas essas mudanças. O artigo de Buchanan de 1992 “Wicked Problems in Design Thinking”, que muitos associam erroneamente ao “surgimento do Design Thinking”, levantou uma grande questão sobre o momento atual da profissão e apontou onde devemos nos posicionar para avançar.
Adaptado de Richard Buchanan: Wicked Problems in Design Thinking (1992)
O gráfico acima é muito simples em sua interpretação; os dois círculos menores (Visual e Artefato) tratam exatamente das duas tradicionais e já conhecidas competências do Design — importantes para a construção de artefatos e para o desenvolvimento da comunicação visual. A grande expansão vem do advento do digital e da web — o que possibilita ao Design passar a trabalhar com interações entre pessoas mediadas por tecnologia e também entre pessoas e seus artefatos. Foi nesse contexto que surgiram as disciplinas de Design de Serviço e Design de Interação — ambas atuando no âmbito da experiência, também conhecida no mercado como experiência do usuário ou experiência do consumidor .
Segundo o Service Design Networking — principal associação profissional do segmento, o Service Design é a prática de projetar serviços. A disciplina usa uma abordagem holística e altamente colaborativa para gerar valor tanto para o usuário quanto para o provedor de serviços durante todo o ciclo de vida de um determinado serviço. O Service Design orquestra experiências que ocorrem ao longo do tempo e em vários pontos de contato. Na prática, o design de serviços ajuda a coreografar os processos, tecnologias e interações que impulsionam a entrega de serviços usando uma perspectiva centrada no ser humano.
Uma jornada de serviço e seus vários pontos de contato (sites, aplicativos, bots, artefatos, pessoas e scripts de processo somam diferentes canais de interação)
Diante disso, gostaria de convidar todos a refletirem sobre por que devemos parar de falar de produtos e começar a falar de serviços. Meus três pontos principais são estes::
- Vivemos em um mundo pós-industrial, que exige novos processos produtivos e estamos imersos em uma economia de serviços. As pessoas atribuem grande valor às coisas imateriais e às experiências vividas. Novos processos exigem novas mentes e novos conhecimentos. A incerteza estará do nosso lado, mas precisamos perder o medo de seguir por caminhos inexplorados. Bem-vindo ao Design do Imaterial, bem-vindo ao Design do Invisível.
- Pode parecer estranho, mas a visão do produto no mundo digital ainda contém um entendimento de finitude na solução gerada. No universo digital não existe “produto acabado”, como acontece com um produto físico que sai da fábrica e chega na casa das pessoas. O digital, em sua essência imaterial, é a base para a construção de diversos canais de comunicação e pontos de contato para acessar milhões de pessoas ao redor do mundo.Ao solicitar um produto — ou seja, para sua finalidade — você está buscando a essência do serviço por trás dele. O produto é apenas um avatar de um serviço.
- A próxima grande fronteira do Design, aquela que trata do pensamento sistêmico, só será acessada quando passarmos pela camada da experiência. Para fazer isso, precisamos abandonar o design do século XX. Vkhutemas e Bauhaus, as primeiras escolas formais de design, completam 100 anos (em 2018 e 2019, respectivamente) e precisamos construir o design do século XXI. O mundo de hoje exige uma nova abordagem. O mundo pede que pensemos sistemicamente porque os problemas que enfrentamos não são isolados e exigem uma nova forma de pensar e agir. Segundo Donald Schön, o pensamento sistêmico requer um novo profissional de design, que reflita sobre sua prática, ou seja, é aprender fazendo e aprender compartilhando.
Para finalizar, gostaria de convidá-los a assistir ao vídeo de Donald Norman, onde ele fala sobre a formação desse novo profissional para o século XXI.
Artigo originalmente produzido e publicado para o projeto brasileiro Design 2021 , que reuniu 97 designers para pensar o momento atual do design brasileiro e que foi coordenado por Vítor Guerra .